Narrativa, exploração e arte
Entrevista com Marie-Laure Ryan
por Ernane Guimarães Neto
APRESENTAÇÃO
A entrevista abaixo com Marie-Laure Ryan tem como contexto um momento social: o crescente interesse, desde a virada para o século 21, no estudo da narrativa em jogos, impulsionado, entre outras publicações, por Narrative as Virtual Reality: Immersion and Interactivity in Literature and Electronic Media, da pesquisadora suíço-estadunidense. Mais especificamente, 2010 começou marcado por uma nova onda de penetração dos jogos eletrônicos na opinião pública, em duas frentes: os jogos sociais, embutidos em sítios como Facebook e Orkut, e os jogos “blockbuster”, amplamente divulgados pela mídia, como Call of Duty – Modern Warfare 2 (por seu volume de vendas similar ao dos maiores sucessos de bilheteria do cinema) ou Dante’s Inferno (que ganhou notoriedade por conta das alusões à Divina Comédia, sendo um representante de um novo olhar, adulto, ao jogo eletrônico por parte da imprensa).
Realizada em março de 2010, a entrevista portanto serve a atualizar o pensamento da pesquisadora, célebre no tema “narrativa” desde pelo menos a década de 1990. Ryan pôde dar atenção a diversos formatos de jogo e, embora a curta duração da entrevista não tenha permitido um alto grau de aprofundamento, dá indícios dos caminhos que a cultura dos jogos eletrônicos deve tomar nos próximos anos, analisados brevemente ao final deste texto.
QUEM É MARIE-LAURE RYAN
Atualmente, a professora de letras na Universidade de Colorado estuda projetos envolvendo mapas em ambientes virtuais tais como o Second Life, mas seu trabalho mais conhecido é aquele relacionado às maneiras de contar histórias na era digital, como no livro Avatars of Story.
Nascida em Genebra, em 1946, Ryan é autora também de Possible Worlds, Artificial Intelligence and Narrative Theory e Narrative as Virtual Reality: Immersion and Interactivity in Literature and Electronic Media.
ENTREVISTA
PERGUNTA – Jogos eletrônicos são arte, no sentido mais elevado?
MARIE-LAURE RYAN – Podem ser. Mas é como o cinema: nem toda obra é pensada como arte e nem todas conseguem atingir o status pretendido.
PERGUNTA – Alguns críticos dizem que os videogames sempre perseguiram a estética cinematográfica (especialmente nas animações e na trilha sonora) em vez de construir seu próprio meio. Concorda?
RYAN – Os jogos se tornaram mais cinematográficos, mas somente em parte, pois a maioria alterna trechos de filme, em que não há absolutamente interação, com o jogo em si.
Como os jogos são criados por grandes equipes, fica mais difícil, como no cinema. É mais complicado ter sua própria direção numa situação dessas. Mas há nichos de mercado que admitem opções, felizmente.
PERGUNTA – Estamos no meio de uma onda de redes sociais. Qual foi o problema com o Second Life, que não continuou na moda?
RYAN – As pessoas querem ser guiadas, querem que haja alguém que medeie a experiência. Como no Second Life não há um roteiro, as pessoas se desinteressaram. Há que fazer um esforço para haver uma história ali, e as pessoas não estão dispostas.
PERGUNTA – A que experiências de narração coletiva devemos prestar atenção agora?
RYAN – Os jogos “multiplayer” chamam minha atenção por conta de um problema do ponto de vista narrativo. Em um jogo que não para nunca, ou você está lá, ou não sabe o que está acontecendo. Esse empecilho é contornado por meio de missões individuais: você joga na hora em que pode e participa de uma história em que mata um dragão; outra pessoa vem depois e esse dragão “renasce” para ser morto por ela. No fim, o que vale nesse jogo maciço acaba sendo o jogo individual, pelo menos do ponto de vista narrativo. Assim, hoje em dia, quem busca narrativa acaba se voltando ao jogo individual.
PERGUNTA – Que podemos aprender de jogos como FarmVille e outros aplicativos de redes sociais?
RYAN – Poderiam até ser arte, no sentido de uma experiência estética, se assim fossem pensados, se assim fossem projetados. Mas não o são.
PERGUNTA – Um dos principais sucessos com “não jogadores” atualmente é Dante’s Inferno. Por que este tem apelo, mais do que em outros jogos baseados em literatura?
RYAN – Não joguei, mas tenho curiosidade. Pelo que vi, o jogo realmente tem potencial. Primeiramente, não é comum fazer adaptações de livros mais adultos, “alta literatura” _temos mais coisas como Harry Potter ou O Senhor dos Anéis. Uma obra literária que tem tudo para virar jogo é a Odisseia. Deveria.
Mas Dante’s Inferno tem os níveis _os círculos do inferno_, um visual potente. Grande parte do prazer se dá em explorar esse mundo estético, ver. A experiência deixa de ser apenas vencer, mas conhecer.
Preocupa-me que seja muito fácil criar jogos com luta. O desafio é justamente sair disso, da automatização, no jogador, do apertar o gatilho, brandir a espada.
PERGUNTA – Que jogos fogem bem à essa interatividade violenta?
RYAN – Jogos como The Sims, em que as personagens interagem, desenvolve-se inclusive uma narrativa e o prazer do jogo está em ver isso acontecer. Há a exploração da relação.
PERGUNTA – Que diz de jogos como os simuladores de futebol, que abundam na web, em que cada jogador administra um time e todos se “encontram” no fórum para deixar suas impressões? Ali explora-se o cenário, desenvolve-se uma narrativa?
RYAN – Não é narrativa, é esporte sem o esforço físico!
PERGUNTA – Acha que o jogo, por exemplo ao retratar Dante como guerreiro, subverte o legado cultural?
RYAN – A reapropriação é uma tendência da cultura pós-moderna. Não precisaria fazer isso se não dependesse da luta para ter jogo, mas, assim como acontece no cinema, o jogo pode estimular as pessoas a comprar o livro e saber se é assim mesmo no original.
PERGUNTA – Senadores brasileiros propuseram no ano passado o banimento de jogos “ofensivos” (que contenham representações de abuso ou desrespeito a símbolos religiosos, por exemplo). Eles não souberam tratá-los como revistas ou filmes, passíveis de classificação etária, ou o jogo proporciona uma mistura especial de infantilidade e conteúdo adulto?
RYAN – Antes do videogame já existiam a pornografia e o horror. Por que banir só os jogos, e não toda a literatura?
PERGUNTA – Bem, como diria James Paul Gee, adquirimos vocabulário por meio da exposição repetida e subconsciente a modelos e por um processo de tentativa e erro, sem ensino formal. Por essa definição, jogar por horas não é uma lavagem cerebral, por exemplo fazendo o garoto que joga The Sims ser treinado para comprar e se tornar um consumista?
RYAN – Toda mídia pode ser usada e abusada: a repetição excessiva apenas faz o pensamento ficar desconexo da realidade.
PERGUNTA – Nesse caso… pesquisas têm mostrado que os videogames têm roubado tempo da assistência à TV. Perde-se muito?
RYAN – Não. E a internet rouba tempo dos dois, o que é ainda melhor, pois nela a pessoa busca o que quer.
PERGUNTA – O que a sra. joga?
RYAN – Não dá tempo de jogar Sims. Os jogos artísticos, que não se preocupam em se repetir muito, têm essa vantagem: não gastam metade da sua vida. Penso em jogos como The Path , que conta uma história muito bem.
ANÁLISE
A entrevista começa com uma pergunta carregada de debates dos quais Marie-Laure Ryan tem participado ao longo de sua carreira. O estatuto de “arte”, com a conotação de atividade superior numa hierarquia cultural (superior, por exemplo, a formas de comunicação como um bilhete ou uma conversa informal), tem sido atribuído aos jogos eletrônicos pela imprensa especializada e, eventualmente, encampados por produtores de jogos como Flower (Thatgamecompany) e Braid (do independente Jonathan Blow). Duas abordagens à arte permeiam essa classificação do jogo. Uma é a definição de arte como estética; uma experiência sensorial e emocional do interpretante diante do texto (palavra aqui tomada no sentido mais amplo, como a utilizam os estudos culturais e os pós-modernos). Outra abordagem faz a analogia do jogo com as artes, notadamente literatura e cinema.
Quanto a este último ponto, uma vasta discussão tem se desenvolvido, culminando especialmente no debate entre os que consideram o fator lúdico e a interatividade do jogo como principal definidor do meio e aqueles que julgam que essas características não impedem que o jogo seja tratado, por seu conteúdo narrativo, como um romance ou um filme (o famigerado debate “ludology versus narratology”).
Em Beyond Myth and Metaphor – The Case of Narrative in Digital Media, Ryan já apontava o interesse comercial em chamar de “narrativos” (e, frequentemente, em algum grau “literários”) recursos utilizados por programas de computador. Exemplos do exagero oferecidos por ela seriam chamar “narrativo” o tema de supermercado no site Amazon.com ou a personagem clipe de papel que acompanhava tutoriais do Microsoft Office.
O texto apresentava definições restritivas para o que é narrativa, como
Narrative representation is constructed by the reader on the basis of the text. Not all texts lend themselves to a narrative interpretation.
Narrative representation consists of a world (setting) situated in time, populated by individuals (characters), who participate in actions and happenings (events, plot) and undergo change.
Uma das características cruciais da narrativa, define Ryan, é a ação. Emprestando como fundamento para uma ideia de narração o arquétipo da “trajetória do herói”, de Joseph Campbell, ela refuta argumentos de que certos textos interativos possuam múltiplas possibilidades narrativas só porque são lidos em ordens diferentes. Separando os tipos de interação a partir de duas variáveis (interação interna/externa e exploratória/ontológica), Ryan separa literatura e jogo, defendendo uma “categoria fenomenológica própria” para os jogos.
A resposta de Ryan para a pergunta “jogo é arte?”, portanto, não passa diretamente pela comparação com literatura ou cinema, mas pela busca de uma forma própria ao meio.
E o pressuposto estético é claro em seu pensamento: ao separar literatura e jogo, a professora dizia que
Narrativity performs an instrumental rather than a strictly aesthetic function: once the player is immersed in the game, the narrative theme may be backgrounded or temporarily forgotten.
Nesta entrevista, Ryan enfatiza a importância da experiência estética na fruição de um jogo, ao comentar Dante’s Inferno, que não havia jogado, mas que conhecia por imagens. A sensação, no caso e em outros que estuda, está intimamente ligada ao conceito por ela desenvolvido de interação exploratória: a possibilidade de o jogador explorar o ambiente é uma das características definidoras da “estesia” lúdica.
Ela não diz que da exploração vêm necessariamente histórias diferentes; como aponta no caso dos jogos online de massa, há uma mistura entre uma narrativa espontânea dos jogadores e um fio condutor de responsabilidade dos programadores (o caso do dragão que “renasce” para que cada usuário individual tenha a possibilidade de o enfrentar pelo menos uma vez).
Reiterando, narrativa não é condição suficiente para haver arte. Reconhecendo diante do entrevistador “The Sims” como seu jogo favorito, e defendendo que, das relações entre personagens do jogador e da inteligência artificial, surgem narrativas novas e interessantes, ela não incluiu esse jogo no grupo das “obras de arte”.
A relação entre as perspectivas narrativa e de exploração de ambientes virtuais (principal viés da atual pesquisa da professora) ajuda a compreender alguns desenvolvimentos recentes do mercado. O ambiente Second Life, por sua liberdade na caracterização e movimentação de personagens e na criação de cenários, proporciona uma plataforma propícia para role-players; mas Ryan aponta, certeira, para o fato de que não há “game masters” nesse ambiente, razão pela qual não houve sucesso com jogadores. Por sua classificação, num ambiente em que há avatares controlados pelo usuário gera a expectativa de uma narração, uma “saga do herói”. Mas, sem que houvesse algum roteiro ou uma iniciativa social que estabelecesse regras, não surgiu um jogo.
Separando jogo e exploração, entendemos por que Second Life fez sucesso entre artistas: tal como instalações plásticas, o ambiente virtual pode ser explorado esteticamente. Marie-Laure Ryan não disse que há jogo por isso.
A intersecção entre jogo e arte, para Ryan, fica hoje restrita ao conjunto de produtos que são pensados como arte. Como ela destaca invocando o exemplo de Path, são jogos narrativos. Mas não se chegou a uma definição positiva da nova visada fenomenológica que definiria essa forma de narração “ludoartística”. Por sua resposta sobre jogos sociais, vê-se que a definição passaria por critérios estéticos.
De uma forma ou de outra, os jogos eletrônicos evoluem em busca de uma estética (agora, a palavra é tomada mais no sentido de código formal, de conjunto repetido de experiências sensoriais, de tradição estilística visual, sonora e narrativa) própria, separada do cinema, o maior influenciador estilístico dos jogos eletrônicos, certamente por conta de suas coincidências formais: imagem em movimento e sonora. Como pondera Ryan, a busca por uma identidade estética renderá algo diferente da reprodução de elementos literários ou cinematográficos no jogo; um filme intercalado por momentos de jogo é a soma das duas coisas, não sua fusão.
São Paulo, maio de 2010.